quarta-feira, 24 de agosto de 2011

A noção de "público" que esperamos deixar para a geração da "pequena Manoela"

A noção de "público" que esperamos deixar para a geração da "pequena Manoela"
Pedro Lenza
Mestre e Doutor pela USP. Advogado e Professor do Curso Marcato
Autor de Direito Constitucional Esquematizado, 15.ª ed., SARAIVA, 2011 e de Teoria Geral da Ação Civil Pública. 3ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
pedrolenza@terra.com.br
http://www.saraivajur.com.br/pedrolenza2011/
Twitter:@pedrolenza
Muito se fala que os países ditos "desenvolvidos" também o são em termos de efetivação dos direitos fundamentais.
Partindo dessa premissa, gostaríamos de analisar algumas situações com o nosso ilustre leitor.
Em Congresso jurídico no Brasil, um professor relatou a sua experiência de, em determinado país da Europa, ao se dirigir a um evento em faculdade, o professor europeu ter parado o carro bem longe da entrada da Universidade.
Intrigado, o professor brasileiro lhe perguntou o motivo de parar o seu carro naquele local se, em verdade, havia vaga mais a frente.
O professor estrangeiro respondeu: estou parando aqui para deixar a vaga para eventual pessoa que necessite parar mais perto da porta de entrada. Nós podemos andar...
Realmente, esse comportamento é bastante interessante e faz parte da cultura daquele cidadão estrangeiro que, certamente, não parou o seu carro longe para "impressionar" o colega brasileiro...
Entre nós, quantas situações já presenciamos em sentido contrário, quantas vezes já observamos uma pessoa parando o carro em vaga de deficiente e saindo andando tranquilamente...e tantas outras passagens que, se pararmos para pensar e analisar friamente, até já podemos ter, sem a devida consciência, o que é muito grave, praticado nós mesmos.
Não se trata de problema normativo, mas, essencialmente, cultural e de cidadania.
Em termos de acessibilidade, não nos faltam previsões constitucionais, destacando-se as garantias: no tocante à contratação pela iniciativa privada - art. 7.º, XXXI; em termos de políticas governamentais - art. 23, II; em termos de política normativa - art. 24, XIV; no tocante à aposentadoria especial - arts. 40, § 4.º, I e 201, § 1.º; em relação à acessibilidade a cargos e empregos públicos - art. 37, VIII; no tocante à assistência social - art. 203, IV e V; no tocante à educação - art. 208, III; em relação aos programas de prevenção e atendimento especializado, bem como de integração social e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.
Conhecendo vários lugares do Brasil, não temos dúvida que muitos estão avançados em relação à garantia do acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência. Contudo, ainda temos muito a melhorar, seja em termos de consciência, como de ação governamental.
O mínimo que se espera, para o início de uma discussão e para termos algum exemplo, é que existam guias rebaixadas, facilidade para entrar em transportes públicos, acesso a edifícios, acesso a lugares de lazer, como parques e, porque não, praias e tantas outras situações cotidianas.
Propomos, então, quem sabe um dia, todos sairmos em cadeiras de rodas em nossas cidades... Certamente, seria um caos e só assim sentiríamos, "na pele", o grande abismo que existe entre a previsão normativa constitucional e a realidade.
Não precisamos ir tão longe. A singela situação de caminhar com o carrinho da minha filha, a pequena Manoela, que cresce e já tem 1 ano, mostra como sofrem os cadeirantes no Brasil.
Outro dia estava na cidade de Santos e observei a existência de acesso à praia para pessoas com deficiência de locomoção, inclusive cadeiras adaptadas para entrarem na água. Realmente fiquei feliz que o Estado estava proporcionando tudo aquilo...
Contudo, em outro momento, na mesma cidade, chegando para atravessar o farol, observei, de longe, uma pessoa cega rodando em círculo, desorientada, na esquina de um grande cruzamento...até ser ajudada por um cidadão que estava ao seu lado.
Devemos observar ainda que esse problema de acessibilidade não é exclusivo do Brasil. Em outra experiência, estando na cidade de Québec (Canadá), imaginando que seriam muito avançados em termos de eliminação dos obstáculos arquitetônicos, posso dizer que me surpreendi, negativamente, com a dificuldade que um cadeirante possa lá ter.
A experiência foi, novamente, com o carrinho da pequena Manoela e o mais surpreendente foi pegar o Funiculaire, uma espécie de elevador que liga a cidade alta e abaixa, e ter que subir, ainda, 18 degraus para sair do tal "elevador" literalmente carregando o carrinho. Sinceramente, nunca imaginei que aquilo pudesse ser observado em cidade tão maravilhosa e altamente turística.
Muito ainda precisa ser feito e, especialmente, uma mudança de comportamento, sejam dos cidadãos, cobrando e fazendo a sua parte, como por parte do poder público.
De fato, em nossa realidade, o significado da palavra público foi desvirtuado, assumindo, ao contrário do que se percebe no direito anglo-saxão e na grande maioria dos países da Europa, uma idéia (preconcebida) de algo que está ligado ao Estado e não ao povo.
Nesse sentido, a constatação primorosa do saudoso Prof. Geraldo Ataliba: "Não sei por que razão - e isto mereceria meditação especialmente, para quem gosta de antropologia, sociologia - nós brasileiros, nós latino-americanos pensamos a palavrapúblico de um modo diferente. Aqui, quando se fala em público, pensa-se em algo que não é meu, que é do governo, que é do Estado, diferentemente do que acontece, por exemplo, na Inglaterra, nos Estados Unidos, na Suécia. Nesses Países, quando se fala em público, todos entendem que é de todos. Um governante, nesse contexto desses países, especialmente anglo-saxônicos, diz 'eu sou um servidor público, estou aqui para servir ao público'. Fala cheio de orgulho, porque serve ao povo. Aqui no Brasil, a autoridade se sente desligada do povo, não tem nada a ver com o povo, comporta-se como dono das coisas e pensa o povo como objeto da sua ação. O sentido de público, no Brasil, até na linguagem normal, é um sentido diferente. E a prova, a tradução - isto é elucubração acadêmica - a prova, a tradução concreta disso está nas nossas ruas, nas nossas praças, nas nossas praias, nos nossos prédios públicos etc., no desleixo, nos maus tratos que sofrem, não só das autoridades e dos funcionários, mas também do próprio povo. O sentido de público entre nós é diferente do sentido de público de alguns outros povos. Isso mereceria um estudo, uma investigação de especialistas" (ATALIBA, G. Ação popular na Constituição brasileira. RDP 76/119 - original sem grifos).
Realmente, tem razão o grande mestre e espero que a geração da pequena Manoela mude essa nossa noção atrasada e pequena de cidadania e ainda que os governantes prestem o seu serviço em nome do povo, pelo povo e para o povo...Tenho esperança.

Nenhum comentário:

Postar um comentário